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Quinta-Feira | 06/04/2017
Gaúcha diagnosticada aos 48 anos desmistifica doença: "Mulheres com parceiros fixos também podem ter HIV"

Foi com uma gargalhada que a advogada aposentada Bia Pacheco reagiu quando o médico a perguntou se ela se importaria em fazer um teste de HIV. Bia, natural do Rio Grande do Sul, tinha então 48 anos e sofria, havia meses, com o aparecimento de vesículas e feridas típicas de varicela em todo o corpo. Em entrevista exclusiva ao R7, ela conta que, àquela altura, as lesões já estavam estampadas em seu rosto e nenhum especialista sabia indicar a razão.

- Eu respondi: ‘Doutor, quem você pensa que eu sou?'. Ele rebateu me questionando se eu achava que HIV tinha alguma coisa a ver com a conduta moral. E eu pensava, realmente, que sim.

De qualquer forma, a gaúcha - que acabara de se casar pela segunda vez e havia tido relações sexuais com três homens ao longo de toda a vida - aceitou se submeter ao exame. O ano era 1998 e os resultados demoravam 90 dias para chegar. Ela assegura que a espera foi tranquila: "Eu tinha certeza que daria negativo", diz. O teste, porém, contrariou as expectativas: Bia foi diagnosticada como soropositiva.

- Durante muito tempo, eu me perguntei ‘por que eu?'. Fui criada em colégio de freiras, onde tudo era errado ou pecado. Mulheres soropositivas, até onde eu sabia, eram profissionais do sexo ou usuárias de drogas. Eu não era nenhuma dessas coisas.

Mudança de pensamento

Duas décadas depois, as percepções da gaúcha mudaram um tanto. Aos 68 anos de idade, Bia é hoje ativista na luta contra a AIDS. Participa de encontros e dá palestras a outros portadores do vírus, distribui camisinhas gratuitamente em todos os encontros e fala abertamente sobre a doença. Com quatro filhos, cinco netos e um bisneto, ela é chamada, inclusive, pelo apelido de HIVó.

Para a aposentada, uma de suas grandes missões é quebrar tabus: "A imagem maternal de mulher com cabelos brancos e mais de 60 anos não se enquadra no perfil que a sociedade em geral tem dos soropositivos. Infelizmente, até hoje, a figura que as pessoas têm dos portadores de HIV é aquela do Cazuza: de que somos magros, tristes, perdendo o cabelo. A gente precisa gritar que qualquer um pode ter HIV, inclusive as mulheres com parceiros fixos. Para ter a doença, basta ser sexualmente ativo e, sobretudo, não acreditar que possa pegar o vírus", diz.

Pesquisas recentes mostram que cada vez mais mulheres brasileiras na faixa etária de Bia têm sido diagnosticadas com o vírus. Segundo boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde em 2016, embora a transmissão tenha caído em quase todas as faixas etárias na última década, a taxa de detecção do HIV entre as mulheres apresentou um crescimento de 24,8% no grupo com mais de 60 anos.

Para Bia, os fatores que levam a esse aumento são muitos.

- Eu sou da primeira geração da pílula. Camisinha, para nós, era uma coisa que nem existia. Muita gente até diz que ‘fazer sexo com camisinha é o mesmo que comer bala com papel', as pessoas têm essa ideia de que o prazer se vai. Além disso, falar de sexo, para pessoas da minha idade, era tido como feio, errado, pecado, sujo. Nós temos que vencer essa barreira.


De acordo com a ativista, o número de infectados na terceira idade, inclusive, deve ser maior do que aquele de que se tem notícia, já que a notificação dos diagnosticados aos órgãos públicos não é obrigatória. Bia afirma que faltam políticas públicas de saúde: "Ninguém presta atenção em nós. O Ministério da Saúde não alerta que os idosos também se infectam. Existe a fantasia de que aqueles com mais idade sejam assexuados. A primeira grande ajuda que os órgãos públicos poderiam fazer é o esclarecimento da população".

Em sua experiência de encontros e palestras com outros portadores do vírus, Bia afirma que a maior dificuldade encontrada pelas mulheres diagnosticadas na terceira idade é a reação da família.

- A coisa mais traumática que eu tenho acompanhado é a reação das famílias. As famílias costumam apresentar uma reação pesada de julgamento, como se tudo o que aquela mulher fez de bom antes do diagnóstico não tivesse existido. Continua a ideia de que a pessoa é 'vagabunda'. O mais importante, de qualquer forma, é procurar ajuda. Não pode ficar em casa esperando, chorando, remoendo. Isso cria monstros. Ainda tem gente que recebe o diagnóstico e acha que vai morrer amanhã.

Saldo de aprendizados

Na vida de Bia, o saldo do diagnóstico - além dos quatro comprimidos que ela toma diariamente para reforçar o sistema imunológico - foi pra lá de positivo.

- Eu fiz uma grande descoberta da diversidade. Na época do meu diagnóstico, eu fui procurar um grupo de apoio às pessoas com HIV aqui no Rio Grande do Sul e, além de mim, só havia outra mulher. Todos os demais eram homossexuais, travestis ou transexuais, que a vida toda eu havia considerado ‘menos gente' do que eu. Conhecer a realidade fantástica deles de perto foi um dos maiores aprendizados que eu já tive, e hoje eu luto pelos direitos deles também, para eles serem vistos como qualquer ser humano.

Ao longo do caminho, a gaúcha conta que já ouviu todos os tipos de críticas - desde que era ativista 'só pra aparecer' até que enfrentar o diagnóstico no caso dela seria fácil: "A coisa mais absurda que já escutei era de que, pra mim, seria mais fácil enfrentar essa realidade porque eu era rica. Eu tive boa educação, eu vim de um bom lar, eu tive apoio, eu sou rodeada de pessoas que me amam, mas não sou rica. O HIV é pra todos, mas na visão de muita gente a população portadora do vírus é só aquela extremamente pobre que não tem o que comer", diz. De qualquer forma, Bia não foge dos debates.

- Preconceito existe, sim, mas é por falta de conhecimento. Todas as vezes em que alguém me rejeitou por eu ser portadora da doença, eu procurei a pessoa, conversei, mostrei a realidade e ganhei mais um aliado na nossa luta. Hoje, eu olho para trás e percebo que, com o meu diagnóstico, eu joguei o lixo da vida fora. O que é o lixo da vida? É a gente se importar com o que os outros pensam da gente. Foi o maior ganho que eu tive nesses últimos vinte anos.
Fonte:R7